
A IGREJA CATÓLICA EM PORTUGAL
Alberto João Jardim
Folheei, com a atenção possível,
tendo em conta o horror sentido, o relatório apresentado pela comissão nomeada
pela Igreja, a fim de analisar os abusos sexuais praticados em contexto
eclesial. Procurei o que lá não está: o nome das comunidades em que tais actos
foram praticados, o nome das paróquias e freguesias onde cresceram os
abusadores. Compreendo a prudência usada pelos investigadores e relatores, mas
gostaria que tal informação lá estivesse. Não sou movido por qualquer espécie
de curiosidade mórbida. A clareza de quanto se revela, em mais de quatrocentas
páginas, basta para provocar náuseas. Considero, ainda assim, que seria
importante cada uma das comunidades católicas envolvidas saber o que se passou
no seu seio ou com os seus. Nem que fosse em privado. Estamos perante crimes
praticados dentro da nossa casa. Não o esqueçamos.
Bem conhecemos a tendência dos seres humanos: o inferno
está sempre nos outros, na casa dos outros, na família dos outros, na terra dos
outros. Vemos os argueiros alheios, mas recusamos o confronto com as trancas
que estão sobre a nossa cabeça. Se acaso nos apercebemos delas, preferimos
fazer de conta. Há, no entanto, momentos libertadores, em que os canos se
rompem, em que a sujeira sai para fora e emporcalha tudo à sua volta, mesmo
quem não queira admitir que ela existia e tinha o pior cheiro. Era por isso
importante que as comunidades católicas soubessem, objectiva e duramente, o que
sucedeu no seu interior, entre os muros dos seus mais sagrados lugares, com
aqueles que viu crescer.
Deixemo-nos de ilusões. A maldade faz parte de cada um
de nós. Como dizia um filósofo, quando tentamos ser anjos transformamo-nos,
frequentemente, em bestas, porque os instintos mais ferozes e irracionais fazem
parte das nossas vidas. Basta uma pequena alteração (económica, social,
afectiva) na nossa existência e ninguém está livre de se transformar num
ladrão, num assassino, num criminoso qualquer. A falta de saúde mental faz o
resto – e o resto é o bastante para transformar um cidadão cordato num perigo
social. Por mais argutas que sejam as recomendações da comissão independente,
nenhuma modificação ocorrerá se as circunstâncias que rodeiam os seres humanos
não forem modificadas, radicalmente modificadas.
Cada um dos muitos abusadores teve ou tem família,
amigos e todo um contexto sócio-afectivo que o fez crescer, desde a mais tenra
infância. Quando uma árvore cresce torta, alguém se absteve de a endireitar.
Fez parte de uma paróquia, integrado ou não noutras estruturas eclesiais. Fez
parte de uma freguesia e de um concelho, onde teve maior ou menor acção social.
São muitos os que agora sacodem a água do capote, mas nenhum dos padres ou
responsáveis católicos que praticou abusos pode ser desligado desse contexto.
Foram ou são portugueses como nós. Viveram ou vivem entre nós. Andaram connosco
na escola. Convivemos com eles no café ou noutros lugares. Foram submetidos às
mesmas propagandas que nós. Mereceram o aplauso (acéfalo?) de muita gente que,
agora, lhes cospe na cara. Ortega y Gasset tinha razão quando falava na
importância das circunstâncias que nos rodeiam para o nosso crescimento e para
as opções que tomamos. Não é certamente por acaso que a maior parte dos abusos
foi praticado nas décadas de maior permissividade social do século XX. Não é
decerto uma circunstância menor verificarmos no relatório a ligação entre os
comportamentos disruptivos e a chamada sexualização absorvente de tudo quanto
nos rodeia, ocorrida nas últimas décadas e em benefício de uma sociedade
alienante e consumista.
Não basta à Conferência Episcopal Portuguesa pedir
perdão público às vítimas e aos portugueses. É absolutamente necessária essa
assunção de culpa institucional, mas vale de muito pouco se ficar por aí. Tem
de tirar consequências urgentes nos métodos de escolha dos candidatos ao
sacerdócio e ao episcopado, em matéria de formação do clero, no que ao celibato
diz respeito, na organização das comunidades e dioceses, nas relações de poder
visíveis e invisíveis, na clareza das palavras e na sinceridade dos actos.
Provando-se as acusações, mesmo estando prescritas no direito civil, há que
reduzir ao estado laical quem profanou o bem recebido no dia da sua ordenação,
não deixando, todavia, de acompanhar esse ser, tão necessitado de
arrependimento e mudança de vida, por mais arrogante que seja.
Não vale de muito tratar os abusadores como párias
sociais, sem compreender como chegou cada um deles ao ponto de degradação a que
chegou. Há toda uma reflexão a fazer. São muito importantes um diagnóstico
correcto e uma terapia adequada. Em primeiro lugar, é necessária uma reflexão
individual que nos tire da indignação acéfala e espumante e nos coloque, antes,
numa indignação que nos obrigue ao exame de consciência, individual e social. O
estudo dos abusos sexuais, desencadeado por alguns membros da Igreja que não
tiveram medo da verdade emergente, tem de continuar na sociedade portuguesa e
europeia. Doa a quem doer! Tem de continuar e tem de tirar consequências dela,
por mais duras que sejam. Decerto chegaremos à conclusão de que é preciso mudar
de vida.
Os padres e outros membros da Igreja que abusaram são
seres humanos como nós, mesmo tendo praticado – consciente ou inconscientemente
– actos diabólicos (não tenhamos medo do termo). Pertencem ao mesmo país que
nós e à mesma sociedade em que existimos e vivemos. O que a todos diz respeito
por todos deve ser reflectido, sem histerias, mas tirando consequências.
Abusos sexuais ou de outro género, praticados na Igreja,
separam o que deveria continuar unido ou religado. Não é por acaso que o simbólico
tem como antónimo o diabólico (a divisão e a discórdia). Por uma misteriosa
coincidência (?), o relatório foi apresentado no dia 13 de Fevereiro,
exactamente dezoito anos após o falecimento daquela que terá recebido um
“segredo”, no qual uma entidade angélica apelava três vezes – e dramaticamente!
– à penitência. A Quaresma aproxima-se. Seria muito positivo se cada uma das
comunidades católicas portuguesas organizasse – publicamente e de forma
expressiva! – um rito de penitência, arrependendo-se por ter permitido a
profanação gravíssima dos seus oásis de bondade, beleza e verdade. Seria também
muito importante que a Igreja e os seus membros (entre os quais me incluo!)
abdicasse do triunfalismo associado à Jornada Mundial da Juventude e usasse esse
evento para se mostrar visivelmente arrependida… O Papa Francisco decerto
concordaria.
Nenhum de nós pode abdicar da consciência, da humildade
e da vigilância. Nenhum de nós pode deixar-se dominar pelo medo. Só assim será
possível pôr à porta do templo aqueles que o conspurcam, ajudando-os na sua
conversão e percebendo, ainda assim, que nenhum de nós está livre de cair na
lama.
| 15 Fev 2023
Ruy Ventura é escritor e investigador
Alberto João Jardim
João Gonçalves, In Jornal de Notícias, 27/03/2023
João Gonçalves, In Jornal de Notícias, 13/03/2023
Esta ideia de que as crianças podem auto-diagnosticar que são do outro sexo – sem qualquer acompanhamento médico especializado - e submeter-se à dependência de drogas para o resto da vida, é um desvio total do protocolo médico normal.
Não sou católico. Mas também não sou anticatólico, nem acho que tenha nada a ganhar com o laicismo que os mata-frades de ontem e de hoje acham que é um progresso.
Cristo funda a Igreja sobre aquele que o traíra horas antes, o que significa que assume que a obra tenha pés de barro. Assim, qualquer objeção à Igreja que venha do “barro”, do limite, não procede!