Pe. João António Pinheiro Teixeira
A felicidade aumenta a produtividade
Caramba, isto foi realmente feio. Tanta gente cega por um ódio ao catolicismo a roçar o irracional Tanta gente a debitar veneno a litro. Tanta gente indignada que nunca se havia indignado
Venho de duas famílias de homens profundamente ateus e de mulheres que, aos poucos, se foram deixando "contaminar" pela descrença. Até mesmo a minha família paterna, proveniente de uma Espanha que, à época, era profundamente católica, veio com o gene do ateísmo integrado. É verdade que, actualmente, o país de Isabel de Castela e de Fernando de Aragão vem experimentando uma espécie de crise de fé global e, em 2019, o Centro de Estudos Sociológicos divulgou um relatório em que mostrava que, pela primeira vez desde a formação do país, o número de ateus, agnósticos e indiferentes à religião (29,1%) era superior ao número de católicos praticantes (22,7%). Mas estes são números recentes porque, no outro tempo, no tempo dos meus avós, a missa era quase obrigatória e, aos domingos, as ruas enchiam-se de mulheres com os cabelos cobertos por mantilhas a caminho da igreja.
Mas aos meus avós, de facto, a fé nunca pegou e, assim, os seus seis filhos que chegaram a adultos vieram engrossar a conta do número de ateus a residir em Portugal. Foi, portanto, rodeada de ateus que cresci e, quando disse que queria ir para a catequese, as mandíbulas só por sorte não se lhes desencaixaram, tal foi a força e intensidade com que abriram as bocas. Inclusivamente descobri há pouco tempo que a minha sobrinha de 19 anos, que nunca viveu em Portugal, não faz ideia do que significa sequer ser-se ou ter-se padrinho ou madrinha. Creio que ainda não tinha contado esta parte, mas enquanto eu me aproximei da fé, o meu irmão herdou a racionalidade da restante família e despreza tudo o que tenha que ver com religião.
Piadas como "onde anda o teu Deus agora, Carmen?" depois de tragédias naturais. Debates intermináveis com pessoas que me
tentavam explicar - como se eu já não soubesse - que é impossível provar a existência de Deus. Gargalhadas mal disfarçadas quando eu respondia que O sentia. Tudo isto fez parte da minha vida desde que me lembro de ser gente. Mesmo dentro de casa. Mas se sempre soube lidar com estas coisas e até com o ar de pretensa superioridade intelectual dos meus amigos ateus desta vida, confesso que não estava preparada para aquilo que senti ao longo da última semana e que foi, nada mais, nada menos do que ódio mal disfarçado.
Caramba, isto foi realmente feio. Tanta gente cega por um ódio ao catolicismo a roçar o irracional. Tanta gente a debitar veneno a litro. Tanta gente indignada que nunca se havia indignado nem um bocadinho. E não, não falo aqui daqueles que consideram que os seus impostos não deviam financiar a Jornada Mundial da Juventude, ou dos que sofreram na pele os constrangimentos impostos pela Jornada. Falo, sim, daqueles que aproveitaram estes dias para mandar cá para fora o rolhão de veneno que tinham entalado na traqueia e que, seguramente, já os impedia de respirar fundo.
Volto à minha história pessoal para dizer que crescer com ateus é viver permanentemente questionada e ver, com demasiada frequência, as nossas convicções serem abaladas. Já escrevi uma crónica sobre o momento em que me zanguei a sério com a Igreja Católica e já disse que a minha fé é uma sobrevivente cuja resistência deveria ser estudada. Mas falta dizer que o meu próprio pai, muito pouco fã de padres, sempre disse uma frase curiosa sobre esta minha relação tão próxima com a igreja: é deixá-la estar que, se tudo o que lhe ensinam é o catecismo, então não lhe estão a ensinar nada que nós não queiramos que aprenda.
Pois é. 0 meu pai ateu, nascido em 1947, sempre teve clarividência suficiente para perceber o mais importante: a mensagem central da religião católica é uma mensagem de humanismo e amor ao próximo.
Fui catequista durante anos e nunca ensinei outra coisa às crianças que passaram por mim que não fossem os valores humanistas básicos. Falámos sempre sobre amor, honestidade, partilha, respeito e perdão. Porque muito antes de conseguirem entender conceitos como Deus ou o universo, as crianças estão aptas a assimilar valores. E os valores da religião católica estão certos. O mal de meio mundo é confundi-los com a própria igreja.
A igreja católica e a fé católica não são a mesma coisa. Porque a Igreja é obra dos homens, a fé não. E na Jornada Mundial da Juventude, mais do que qualquer outra coisa, é a fé que se celebra. Os jovens que invadiram o nosso país nos últimos dias não são os padres que abusaram sexualmente de crianças nem o Governo que gastou o dinheiro dos contribuintes na organização do evento. São miúdos, como todos nós já fomos, vindos de todos os cantos do mundo, que acreditam que existe um Deus, acima de nós, que nos ama e protege.
O Deus destes miúdos é um Deus compassivo e piedoso que ama os seus filhos. E eles vieram celebrá-Lo, com alegria. Aquela alegria tão própria da juventude que muitos de nós, infelizmente, fomos perdendo ao longo do caminho. O Deus destes miúdos é um Deus de felicidade. E eles mostraram-n'0 vivo.
"Corja de betos", "burros que nem cepos", "putos ridículos". Estas foram apenas algumas das ofensas que encontrei nas redes sociais juntamente com apelos a que se tratassem mal os peregrinos e que se adoptassem propositadamente comportamentos que os pudessem escandalizar. Porque, junto com a irreverência da juventude, também o ódio saiu à rua durante a semana, de cara descoberta e sem um pingo de vergonha da sua mediocridade.
Ter fé não torna ninguém intelectualmente inferior. Copérnico, Bartolomeu de Gusmão, Mendel ou Georges Lemaitre. Sabem o que têm em comum estes homens, para além do facto de pertencerem ao grupo dos maiores cientistas de sempre? Todos eram padres. É verdade. Até a teoria do átomo primordial, que se popularizou como Teoria do Big Bang, foi formulada por um padre. Engraçado, não é?
Os jovens católicos são livres e isso viu-se nos últimos dias. Nenhum acesso lhes é impedido. Nenhuma informação lhes está vedada. Conhecem a ciência e duvido que se escandalizem com muita coisa. Insistir em colar estes miúdos a padres abusadores e aos tempos da caça às bruxas da Inquisição é só absolutamente vergonhoso e nem devia dar direito a comentários.
Mas é difícil ficar calada depois de ver tanto ódio e rancor contra miúdos que não fizeram mais do que celebrar a sua fé. Juntos. Acompanhados pelo Papa mais progressista da história. E ainda mais difícil é não desejar que todos os ateus do mundo sejam, afinal, como o meu pai e os meus avós que, não compreendendo sequer o conceito de fé, sempre assumiram que a cada um deve ser dado espaço para a viver em pleno porque, na génese, ela é um escudo protector.
-Vai com Deus, filha - diz ele, quando me despeço.
-Mas, se tu nem acreditas em Deus... - retruco.
-Mas acreditas tu, filha - responde.
E, no fim de contas, isso é tudo aquilo que importa.
A felicidade aumenta a produtividade
“As ruas e as praças de Lisboa não pertencem apenas aos sindicatos e não são propriedade da extrema-esquerda. Até os Católicos se podem manifestar, porque há separação entre a Igreja e o Estado.”
Cristina Robalo Cordeiro
Maria Susana Mexia
Alberto João Jardim
João Gonçalves, In Jornal de Notícias, 27/03/2023