Pe. João António Pinheiro Teixeira
A felicidade aumenta a produtividade
Para os crentes, o culto não é menos essencial do que as necessidades materiais. O Estado (laico) não pode ignorar isso. E não o ignora nos seus ordenamentos jurídicos.
Anuncia-se um conflito judicial entre o
governo da Catalunha e a Igreja Católica, a propósito das restrições à
liberdade de culto motivadas pelo combate à pandemia do coronavírus. Numa missa
de sufrágio pelas vítimas de tal pandemia, celebrada na basílica da Sagrada
Família, a arquidiocese de Barcelona permitiu a participação de duzentas
pessoas (entre elas, sobretudo familiares dessas vítimas) e o governo considera
que não poderiam ter participado mais de dez. Acontece, que a capacidade dessa
basílica é de cerca de nove mil pessoas, sendo que, para o afluxo de turistas
(quem já fez a visita sabe bem como esse afluxo é, habitualmente, de enormes
proporções) não vigora qualquer limitação minimamente equiparável. O governo
pretende sancionar a conduta da arquidiocese; esta considera as limitações do
governo contrárias às garantias constitucionais da liberdade religiosa e de
culto.
Tive ocasião de conhecer pessoalmente o
cardeal Juan Omella, arcebispo de Barcelona, uma pessoa empenhada em construir
pontes com políticos de várias tendências no contexto tão tenso e complexo como
é o da Catalunha. Não é, certamente, uma pessoa que busque deliberadamente
criar conflitos deste tipo. Compreendo a sua reação perante o que se afigura
como evidente violação da liberdade religiosa, atendendo, além do mais, à
diferença de critérios entre o exercício do culto e a atividade turística.
Casos análogos têm surgido em tribunais de
vários países (nos Estados Unidos, na Alemanha, ou na França). Em França, país
onde tradicionalmente a influência laicista é mais acentuada, um acórdão
do Conseil d´État (tribunal equivalente ao nosso Supremo
Tribunal Administrativo), de 18 de maio, considerou desproporcionada a
proibição total de atos de culto durante o período de confinamento e determinou
que o governo deveria limitar as restrições à liberdade de culto ao
estritamente necessário, tendo em conta as exigências sanitárias de combate à
pandemia (pode aceder-se ao acórdão aqui).
As restrições à liberdade de culto motivadas
pelo combate à Covid-19 têm originado acusações contra uma suposta estratégia
global de pendor totalitário que, a pretexto desse combate, pretenderá, antes,
combater a religião. Não sigo tal tese, que me parece tributária de alguma
“teoria da conspiração”. Mas o que me parece notório, é que se verifica, em
contextos muito variados, onde se inclui também o do nosso país, um
desconhecimento, uma incompreensão, ou uma desvalorização, do que representa o
culto religioso para os crentes. Porque desse culto não depende a retoma
económica e porque ninguém (ou quase ninguém) perderá o emprego se ele for
suprimido ou limitado, justificar-se-iam limitações mais severas do que as que
afetam a atividade económica. Por isso (e não certamente porque sejam maiores
os perigos), em muitas situações são maiores as limitações ao culto do que as
que se aplicam a supermercados, restaurantes, cinemas, ou transportes públicos.
No entanto, porque “nem só de pão vive o
homem”, para os crentes, o culto não é menos essencial do que as
necessidades materiais. O Estado (laico) não pode ignorar isso. E não o ignora
nos seus ordenamentos jurídicos, onde a liberdade religiosa assume um relevo
primordial. Esse relevo compreende-se, precisamente, porque o Estado (laico)
não ignora a importância que a religião e o culto assumem para os crentes (é aí
que encontram sentido para a sua existência, força e apoio espirituais, mais do
que em qualquer outra realidade).
A liberdade religiosa está indissociavelmente
ligada à liberdade de culto nas suas dimensões pessoal e comunitária. Encerra,
pois, sempre, uma dimensão privada e pública, pessoal e comunitária. É o que
claramente decorre do artigo 18.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
do artigo 9.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e do artigo
10.º, n.º 1, da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais (todos estes preceitos
afirmam explicitamente tais dimensões privada e pública, pessoal e
comunitária). Não pode, por isso, aceitar-se a argumentação de um ministro do
governo francês, que afirmou estar salvaguardada a liberdade religiosa no
período de confinamento, apesar do encerramento obrigatório de igrejas, porque
qualquer pessoa poderia rezar em sua casa. Tem, pois, apoio nesses instrumentos
jurídicos a proclamação do Papa Francisco na sua homilia de 17 de abril: “O
ideal da Igreja é sempre com o povo e os sacramentos. Sempre. Não se pode
viralizar a Igreja.”
Precisamente porque o Estado (laico) não
ignora o relevo e a importância que a religião e o culto assumem para os crentes,
a liberdade religiosa é das poucas liberdades que não pode ser, em qualquer
caso, afetada pela declaração do estado de emergência (como decorre do artigo
19,º, n.º 6, da Constituição portuguesa). Ao contrário do que em muitas
situações e países se tem verificado, numa situação de estado de emergência
justificam-se mais facilmente restrições à liberdade de iniciativa económica,
ou de trabalho, do que restrições à liberdade religiosa.
Não me parece que afete a liberdade religiosa
a imposição em atos de culto de regras de prevenção sanitárias (desinfeção,
distanciamento, uso de máscara), que tenham base científica e que sejam
proporcionadas, numa busca de articulação com as normas canónicas (no caso, da
Igreja Católica), ou normas equiparáveis que regem esse culto de acordo com a
doutrina das confissões respetivas. A propósito, devo dizer que em várias
localidades por onde tenho passado, fiquei com a sensação nítida de que a
igreja era o local público mais cuidado e seguro nessa perspetiva preventiva.
Mas tais regras não poderão de algum modo impedir o exercício do culto público
e coletivo, que sempre poderá ocorrer, nem que para tal seja necessário adaptar
ou alterar o seu local. E nem que seja necessário multiplicar a sua frequência
(como também tem sucedido), para que dele ninguém fique privado.
O que já afetará tal liberdade será a
proibição pura e simples do culto. Não apenas o culto individual (como se
verificou, e verifica ainda, nalguns países, que impuseram o encerramento
obrigatório de igrejas e templos), mas também o culto coletivo (como chegou a
verificar-se entre nós, na sequência da declaração do estado de emergência).
PEDRO VAZ PATTO, In Observador 5 ago 2020
A felicidade aumenta a produtividade
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