Nem só de pão vive o homem

Pedro Vaz Patto (Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz)

Para os crentes, o culto não é menos essencial do que as necessidades materiais. O Estado (laico) não pode ignorar isso. E não o ignora nos seus ordenamentos jurídicos.

Anuncia-se um conflito judicial entre o governo da Catalunha e a Igreja Católica, a propósito das restrições à liberdade de culto motivadas pelo combate à pandemia do coronavírus. Numa missa de sufrágio pelas vítimas de tal pandemia, celebrada na basílica da Sagrada Família, a arquidiocese de Barcelona permitiu a participação de duzentas pessoas (entre elas, sobretudo familiares dessas vítimas) e o governo considera que não poderiam ter participado mais de dez. Acontece, que a capacidade dessa basílica é de cerca de nove mil pessoas, sendo que, para o afluxo de turistas (quem já fez a visita sabe bem como esse afluxo é, habitualmente, de enormes proporções) não vigora qualquer limitação minimamente equiparável. O governo pretende sancionar a conduta da arquidiocese; esta considera as limitações do governo contrárias às garantias constitucionais da liberdade religiosa e de culto.

Tive ocasião de conhecer pessoalmente o cardeal Juan Omella, arcebispo de Barcelona, uma pessoa empenhada em construir pontes com políticos de várias tendências no contexto tão tenso e complexo como é o da Catalunha. Não é, certamente, uma pessoa que busque deliberadamente criar conflitos deste tipo. Compreendo a sua reação perante o que se afigura como evidente violação da liberdade religiosa, atendendo, além do mais, à diferença de critérios entre o exercício do culto e a atividade turística.

Casos análogos têm surgido em tribunais de vários países (nos Estados Unidos, na Alemanha, ou na França). Em França, país onde tradicionalmente a influência laicista é mais acentuada, um acórdão do Conseil d´État (tribunal equivalente ao nosso Supremo Tribunal Administrativo), de 18 de maio, considerou desproporcionada a proibição total de atos de culto durante o período de confinamento e determinou que o governo deveria limitar as restrições à liberdade de culto ao estritamente necessário, tendo em conta as exigências sanitárias de combate à pandemia (pode aceder-se ao acórdão aqui).

As restrições à liberdade de culto motivadas pelo combate à Covid-19 têm originado acusações contra uma suposta estratégia global de pendor totalitário que, a pretexto desse combate, pretenderá, antes, combater a religião. Não sigo tal tese, que me parece tributária de alguma “teoria da conspiração”. Mas o que me parece notório, é que se verifica, em contextos muito variados, onde se inclui também o do nosso país, um desconhecimento, uma incompreensão, ou uma desvalorização, do que representa o culto religioso para os crentes. Porque desse culto não depende a retoma económica e porque ninguém (ou quase ninguém) perderá o emprego se ele for suprimido ou limitado, justificar-se-iam limitações mais severas do que as que afetam a atividade económica. Por isso (e não certamente porque sejam maiores os perigos), em muitas situações são maiores as limitações ao culto do que as que se aplicam a supermercados, restaurantes, cinemas, ou transportes públicos.

No entanto, porque “nem só de pão vive o homem”, para os crentes, o culto não é menos essencial do que as necessidades materiais. O Estado (laico) não pode ignorar isso. E não o ignora nos seus ordenamentos jurídicos, onde a liberdade religiosa assume um relevo primordial. Esse relevo compreende-se, precisamente, porque o Estado (laico) não ignora a importância que a religião e o culto assumem para os crentes (é aí que encontram sentido para a sua existência, força e apoio espirituais, mais do que em qualquer outra realidade).

A liberdade religiosa está indissociavelmente ligada à liberdade de culto nas suas dimensões pessoal e comunitária. Encerra, pois, sempre, uma dimensão privada e pública, pessoal e comunitária. É o que claramente decorre do artigo 18.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, do artigo 9.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e do artigo 10.º, n.º 1, da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais (todos estes preceitos afirmam explicitamente tais dimensões privada e pública, pessoal e comunitária). Não pode, por isso, aceitar-se a argumentação de um ministro do governo francês, que afirmou estar salvaguardada a liberdade religiosa no período de confinamento, apesar do encerramento obrigatório de igrejas, porque qualquer pessoa poderia rezar em sua casa. Tem, pois, apoio nesses instrumentos jurídicos a proclamação do Papa Francisco na sua homilia de 17 de abril: “O ideal da Igreja é sempre com o povo e os sacramentos. Sempre. Não se pode viralizar a Igreja.

Precisamente porque o Estado (laico) não ignora o relevo e a importância que a religião e o culto assumem para os crentes, a liberdade religiosa é das poucas liberdades que não pode ser, em qualquer caso, afetada pela declaração do estado de emergência (como decorre do artigo 19,º, n.º 6, da Constituição portuguesa). Ao contrário do que em muitas situações e países se tem verificado, numa situação de estado de emergência justificam-se mais facilmente restrições à liberdade de iniciativa económica, ou de trabalho, do que restrições à liberdade religiosa.

Não me parece que afete a liberdade religiosa a imposição em atos de culto de regras de prevenção sanitárias (desinfeção, distanciamento, uso de máscara), que tenham base científica e que sejam proporcionadas, numa busca de articulação com as normas canónicas (no caso, da Igreja Católica), ou normas equiparáveis que regem esse culto de acordo com a doutrina das confissões respetivas. A propósito, devo dizer que em várias localidades por onde tenho passado, fiquei com a sensação nítida de que a igreja era o local público mais cuidado e seguro nessa perspetiva preventiva. Mas tais regras não poderão de algum modo impedir o exercício do culto público e coletivo, que sempre poderá ocorrer, nem que para tal seja necessário adaptar ou alterar o seu local. E nem que seja necessário multiplicar a sua frequência (como também tem sucedido), para que dele ninguém fique privado.

O que já afetará tal liberdade será a proibição pura e simples do culto. Não apenas o culto individual (como se verificou, e verifica ainda, nalguns países, que impuseram o encerramento obrigatório de igrejas e templos), mas também o culto coletivo (como chegou a verificar-se entre nós, na sequência da declaração do estado de emergência).

PEDRO VAZ PATTO, In Observador 5 ago 2020

Publicado em 2020-08-07

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