Pe. João António Pinheiro Teixeira
A felicidade aumenta a produtividade
Mais uma vez, a mais de cinco anos do massacre dos jornalistas do “Charlie
Hebdo”, os acontecimentos em torno das gravuras sobre Maomé marcam a trágica
explosão do fanatismo islâmico, com o assassínio do professor francês,
decapitado em Conflans-Sainte-Honorine, na periferia de Paris, por ter mostrado
aos seus estudantes essas imagens satíricas, numa aula sobre liberdade de
expressão.
Liberdade vs. obscurantismo
Todavia, para além do horror por este ato absurdo, seria talvez oportuna
uma reflexão sobre o significado do que aconteceu e sobre as reações que –
então, como hoje, foram não só de comovida solidariedade pelas vítimas, mas
também de orgulhosa celebração do valor em nome do qual elas tombaram: a
liberdade de pensamento.
«Um dos nossos compatriotas foi assassinado hoje porque ensinou a liberdade
de crer ou de não crer», declarou o presidente francês, Emmanuel Macron. E,
referindo-se ao assassino: «Queria abater a República, o Iluminismo, a
possibilidade de tornar os nossos filhos cidadãos livres. Esta batalha é nossa.
Não conseguirão passar (…). O obscurantismo e a violência que o acompanha não
vencerão, não nos dividirão».
A única fé que hoje nos une
São os mesmos tons que em 2015 ecoaram, não só em França, mas em todos os
países europeus. Foram muitíssimos, então, a gritar o slogan «Je suis Charlie».
Não é só uma convicção: é uma fé. A reação unânime que, sem exceções, uniu,
então como hoje, os cidadãos desta Europa secularizada e desencantada, revela
que a fé não foi, de todo, substituída por um cínico utilitarismo, como
sustentaram observadores que usavam como único parâmetro as religiões
tradicionais. É a fé na liberdade.
A lógica do insulto
No entanto, talvez seja necessário compreender por que é que um valor tão
alto pôde suscitar uma reação de ódio tão violenta. Com efeito, poucos falam do
conteúdo dos desenhos satíricos do “Charlie Hebdo”. Os referentes a Maomé
ridicularizam-no, mas sobretudo ofendem-no. Como o que, por exemplo, o
representa com os ares de um porco (animal que o islão considera impuro).
De facto, os seus autores eram especialistas em escarnecer, da maneira mais
vulgar e provocadora, a fé dos outros. Tive sob os meus olhos uma gravura em
que as pessoas da Trindade cristã eram representadas no ato de um abraço sexual
a três, com os órgãos genitais bem à vista, e no ato da penetração recíproca.
Devo dizer que não só não me fez rir, mas impeliu-me a perguntar-me quem –
crente ou não – se poderia divertir diante daquelas imagens obscenas. Uma
crítica? Ser era, estava mascarada pelo escárnio da blasfémia.
Nós, cristãos, não disparamos a quem nos dá uma bofetada, damos a outra
face. E condenamos com firmeza toda a forma de violência. Mas não posso não
pensar que é bem desgraçada uma liberdade de pensamento e de expressão que se
exercita através da ofensa gratuita à fé dos outros.
Demasiada liberdade, ou demasiada pouca?
Talvez o problema da nossa cultura dominante não seja, como dizem alguns,
ter adotado uma ideia excessivamente ampla de liberdade, mas, ao contrário, de
a ter restringido em demasia. Reduzida à pura e simples autonomia
individualista, esta liberdade torna-se autorreferencial e transforma-se num
buraco negro, que engole e anula tudo o resto. E a fé nela assume,
paradoxalmente, a forma de uma religião rigorosamente monoteísta, cujo ídolo
não admite a concorrência de outras divindades sem se sentir ameaçado.
Uma liberdade que se torna ídolo
Sem negar a liberdade como autonomia, é urgente redescobrir aquelas suas
formas, hoje esquecidas, que permitem à própria autonomia ter o seu pleno
significado. A liberdade não é um fim em si mesma. Quando se eleva a valor
exclusivo, suicida-se. Eliminar todo o valor, pelo menos hipotético, que a
supere e para a qual possa tender, significa condená-la a vaguear no nada. Como
hoje acontece na sociedade consumista, que faz acreditar às pessoas que são
livres porque podem fazer e, sobretudo, comprar aquilo que as modas e a
publicidade de quando em vez propõem, até à substituição no ano seguinte.
Abertura à verdade e respeito
Nesta ótica, ser libre significa estar aberto à procura da verdade, onde
quer que ela se apresente, desmascarando as falsificações presentes em tantas
falsas crenças, mas sem excluir de encontrar nelas também algo de válido. Isto
implica que, mesmo sem as partilhar, se respeitem as convicções dos outros.
Mesmo aquelas que não se partilham. Mesmo as religiosas.
Como ensinava um grande intelectual laico, Norberto Bobbio, há um abismo
entre a laicidade, que reivindica o direito de não acreditar, e o laicismo, que
contesta o direito de acreditar e ridiculariza a fé dos outros.
O vazio insustentável da indiferença
Estas considerações, obviamente, não diminuem um grama sequer do peso da
minha condenação por quem respondeu a esta violência intelectual com uma física
imensamente maior. Elas visam apenas fender a total indiferença da opinião
pública ocidental em relação àquilo que a “sua” liberdade atinge e destrói.
Mesmo da perspetiva de quem se propusesse fazer frente ao islão como um
inimigo ameaçador, segundo a lógica do “choque de civilizações”, uma estratégia
que desertifica, do ponto de vista espiritual, o nosso continente, é uma
loucura. Aos excessos do fundamentalismo não se pode ter a ilusão de responder
com o vazio. Deveria fazer refletir a triste experiência de tantos jovens
europeus que, num passado recente, foram combater pelo autodenominado Estado
Islâmico, porque se encontraram a escolher entre o fanatismo daquela realidade
político-religiosa, que seja como for lhes prometia um sentido para a sua vida,
e o nada.
Por isso, partilho a indignação do presidente Macron e de todas as pessoas
pelo bárbaro homicídio de Conflans-Sainte-Honorine. Mas reivindico o direito de
dizer que uma liberdade que se crê tal só quando destrói com uma gargalhada
aquilo que não é ela própria não me basta, aliás, dá-me medo.
Giuseppe Savagnone
Diretor do Departamento da Pastoral da Cultura da diocese de Palermo (Itália)
In Tuttavia
Trad.: Rui Jorge Martins
Imagem: D.R.
Publicado em 28.10.2020
A felicidade aumenta a produtividade
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