
A Eucaristia comparada a um passe de mágica
Fernando Pinheiro
Abordei pela primeira vez a questão da legalização da
eutanásia (e do suicídio assistido) perante a Constituição portuguesa no (já algo
longínquo) ano de 2002, num artigo publicado na revista da Faculdade de Direito
da Universidade Católica, Direito e Justiça.
O essencial dessa análise
mantém-se atual, agora que a questão pode ser objeto de um pedido do Presidente
da República de fiscalização preventiva da constitucionalidade da Lei recentemente
aprovada na Assembleia da República.
É verdade, porém, que o contexto
jurisprudencial internacional mudou bastante desde 2002. Na altura, havia
decisões do Supremo Tribunal norte-americano que rejeitavam a
inconstitucionalidade das leis estaduais que punem o suicídio assistido
(entretanto, foram aprovadas normas em maior número de Estados que o
autorizam). O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos havia declarado, um ano
antes, no caso Diane
Pretty vs. Reino Unido, a conformidade à Convenção Europeia dos
Direitos Humanos de normas que punem o auxílio ao suicídio. Entretanto, a
eutanásia foi legalizada no Canadá por imposição do Tribunal Constitucional e
os Tribunais Constitucionais italiano, alemão e austríaco declararam que o
respeito pela autonomia individual impõe a descriminalização do auxílio ao
suicídio. O mais categórico de todos foi o alemão, que rejeitou qualquer limite
à criminalização desse auxílio, mesmo fora das situações de doença, levando a
esse ponto extremo o respeito pela autonomia individual (o que tem a sua lógica
e deve ser invocado por quem alerta para os perigos da rampa
deslizante, da impossibilidade de limitar a situações excecionais o
âmbito da legalização).
Mas estas posições de Tribunais
estrangeiros não deveriam, em minha opinião, influir na decisão que possa vir a
tomar o Tribunal Constitucional português.
Este terá de confrontar-se com a
compatibilidade da legalização da eutanásia e do suicídio assistido com a
claríssima e inequívoca afirmação do artigo que encabeça o catálogo dos
direitos fundamentais na Constituição portuguesa: “A vida humana é inviolável”
(artigo 24.º, n.º 1). A inviolabilidade da vida humana é aí afirmada de modo
assertivo, categórico e incondicional.
Essa inviolabilidade não comporta
exceções. Não é exceção a essa inviolabilidade o eventual consentimento do
titular da vida (consentimento cuja autenticidade seria, de resto, nos casos de
“sofrimento intolerável” a que se refere a lei aprovada, sempre questionável).
A vida é inviolável mesmo com o consentimento da vítima. Por isso, sempre têm
sido puníveis o homicídio a pedido e o auxílio ao suicídio. A orientação dos
Tribunais Constitucionais alemão, austríaco e italiano encontra nesta afirmação
absoluta um sério obstáculo.
Numa audição relativa à discussão
dos projetos que estão na base da Lei entretanto aprovada, ouvi uma deputada
sustentar que a inviolabilidade da vida humana consagrada na Constituição
portuguesa é apenas a da vida de quem quer viver, não a de quem lhe quer pôr
termo. Mas isso seria acrescentar à formulação do princípio constitucional um
limite e uma reserva que dele não constam, nem explícita nem implicitamente.
A Constituição portuguesa confere
à vida humana uma proteção ainda mais forte do que se reconhecesse (como fazem
a generalidade das Constituições) apenas o direito subjetivo à vida, e não
também um princípio objetivo de inviolabilidade da vida. Isto porque poderia
ser eventualmente questionável (embora não necessariamente) a
irrenunciabilidade e indisponibilidade desse direito. Com a formulação desse
princípio objetivo, não pode haver dúvidas de que o direito à vida é
irrenunciável e indisponível.
Compreende-se que o princípio da
inviolabilidade da vida encabece o catálogo constitucional dos direitos
fundamentais, pois a vida é o pressuposto de todos os direitos. Atentar contra
a vida é destruir a fonte e a raiz de quaisquer direitos.
Não tem sentido contrapor a
inviolabilidade da vida humana aos direitos e princípios constitucionais de
liberdade e autonomia individuais, como se estes sobre ela pudessem prevalecer,
precisamente porque a vida é o pressuposto desses direitos. Afirmou José Souto
Moura num artigo recente: “Pode haver vidas sem liberdade, mas não há
liberdades sem vida.”
Também não tem sentido invocar o
direito ao “livre desenvolvimento da personalidade”, consagrado explicitamente
na Constituição alemãs e reconhecido pela jurisprudência de vários países. A
morte não pode, obviamente, corresponder a algum desenvolvimento da
personalidade, é a cessação de qualquer “desenvolvimento da personalidade”.
A legalização da eutanásia e do
suicídio assistido viola, assim, o princípio e a garantia da inviolabilidade da
vida humana consagrados no artigo 24., n.º 1, da Constituição.
Mas a legalização da eutanásia e
do suicídio assistido, nos termos propostos (iguais ao de todas as legislações
que a admitem), viola também os princípios da dignidade humana (artigo 1º da
Constituição) e da igualdade (artigo 13.º desse diploma).
Da conjugação desses princípios
decorre que todas as vidas, em todas as situações e em todas as suas fases, são
igualmente dignas. A dignidade da vida nunca se perde. Não há vidas indignas de
ser vividas. Não há vidas que por qualquer motivo deixem de merecer proteção.
Ora, a legalização da eutanásia e
do suicídio assistido, nos termos propostos, parte da ideia de que há vidas que
deixariam de merecer proteção porque são marcadas pela doença e pelo
sofrimento. Essas vidas deixariam de merecer proteção porque estariam
desprovidas da dignidade que é própria de quaisquer outras vidas (as quais
continuariam a merecer proteção).
Dir-se-á que se trata de combater
esse sofrimento. Mas a eutanásia e o suicídio assistido não eliminam o
sofrimento, eliminam a vida da pessoa que sofre. A resposta à doença e ao
sofrimento não pode ser a morte provocada. Há de ser o acesso aos cuidados
paliativos, de que, de resto ainda estão privados muitos portugueses.
São estes os motivos por que a
legalização da eutanásia e do suicídio assistido viola a Constituição
portuguesa.
Pedro Vaz Patto é presidente da
Comissão Nacional Justiça e Paz, da Igreja Católica
In 7 Margens - Jornal digital de religiões, espiritualidades e culturas, 4 Fev 2021
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